Praça da Liberdade – Exposições, peças, shows e instalações no Circuito Cultural da praça oferecem novas maneiras de enxergar a realidade até 9 de julho

“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas.” No mês dedicado à luta antimanicomial, as palavras da terapeuta alagoana Nise da Silveira (1905-1999) são um convite à apreciação da loucura.
Não é de hoje que a relação entre arte e loucura tem sido perscrutada. Um dos nomes mais importantes das artes visuais brasileiras, Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), mostrou ao mundo como o sofrimento mental pode ser transformado. Em instalações, objetos, esculturas e bordados, convidou todos para adentrar no seu mundo.

A proximidade entre a arte e este estado especial da consciência é tema de um projeto que ocupa, até 9 de julho, o Circuito Cultural Praça da Liberdade, com exposições, shows e instalações. Em parceria com os centros de convivência da Prefeitura de Belo Horizonte, boa parte dos trabalhos são produzidos por pessoas com sofrimento mental, usuários desses espaços de ressocialização, cidadania e inclusão.

Na quinta-feira, 18 de maio, foi comemorado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial com a realização do tradicional cortejo da escola de samba Liberdade Ainda que Tam Tam. O nome reafirma o propósito da reforma psiquiátrica, iniciada há 30 anos, em Bauru (SP), por um grupo de profissionais da saúde e familiares que entenderam que a melhor forma de tratar as pessoas com sofrimento mental é com liberdade e não o aprisionamento em manicômios. Com fantasias e adereços, eles saíram da Praça da Liberdade em direção à Praça da Estação para mostrar que, na alegria, não há diferença entre sanidade e loucura.

Beto Novaes/EM/D.A Press
No Dia da Luta Antimanicomial, a escola de samba Liberdade inda que Tam Tam ocupou a Avenida João Pinheiro (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

Naidna Maria de Souza, de 53 anos, participou do desfile e passou antes, no Centro Cultural Banco do Brasil, onde duas de suas pinturas integram a exposição Empresta-me teus olhos?, que pode ser vista até 29 de maio. A mostra convoca as pessoas ditas normais a lançar outro olhar sobre a loucura. “Desabafo na arte. Não busco refúgio em outras coisas que vão me prejudicar”, diz Naidna, mostrando o retrato de uma mulher a sorrir. “É uma pessoa feliz”, constata. Naidna foi até a exposição com os colegas Gudson Alves da Silva, de 35, e Antônio Eustáquio Guedes, de 58, também usuários do Centro de Convivência Providência.

Os delírios, chamados por Gudson de invasões, são reduzidos por meio da arte, expressos em cadernos de caligrafia, pinturas ou cartografia. “A arte ajuda a conter o verbo. Sofro de incontinência verbal. Quando começo a representar, penso que tenho que desenhar a palavra antes de falar. Educo o ouvido e a boca”, afirma Gudson, que se trata de esquizofrenia paranoide. “É uma forma de reduzir o excesso do delírio.”

A exposição Empresta-me teus olhos? é parte do acervo da Mostra Arte Insensata, idealizada em 2008 e realizada com trabalhos de pessoas com sofrimento mental atendidas pelos nove centros de referência em saúde mental (Cersam) de Belo Horizonte. “A produção tem proximidade com arte naif com refinamento artístico para ocupar os lugares nobres, tanto quanto o Arthur Bispo do Rosário ocupou”, afirma Mamutte, professor de música que ministra oficinas nas centros de convivência. Os centros são espaços onde muitos dos pacientes tomam contato, pela primeira vez, com o universo das artes. Isso porque muitos deles são pobres e vêm da periferia.

Os relatos e narrativas dos usuários podem ser ouvidos na instalação A dois palmos do chão, no Museu das Minas e do Metal – MM Gerdau. O nome da instalação faz referência a uma das obras de Bispo do Rosário. Mamutte destaca o trabalho de Itamar Bombrilhão, que usa o bordado para fazer inscrições. Um de seus trabalhos mais conhecidos são os mandamentos. “Na instalação, temos o depoimento de Bombrilhão sobre a cidade, a dimensão mística”, afirma.

Arte e loucura

Exposições, peças e shows no Circuito Cultural Praça da Liberdade. Programação completa: www.circuitoculturalliberdade.com.br.

Eu sou, tu és, ele é, nós somos, vós sois, eles são
Exposição de fotografias de Guilherme Bergamini sobre o Hospital Colônia de Barbacena. Teatro Marília (Av. Prof. Alfredo Balena, 586, Santa Efigênia). De segunda a quinta-feira, das 10h às 18h; sexta e sábado, das 10h às 20h; e domingo, das 10h às 19h. Entrada franca. Até 11 de junho.

Cidadania e afeto

Wagri Constantino, de 27 anos, é daquelas pessoas que gostam de cantar em casa ou na rua. Também ama tocar violão. “A música está dentro de mim, vivo cantando”, afirma. Com voz de barítono, ele compõe o grupo São Doidão. O conjunto se apresentou no último sábado no Espaço do Conhecimento da UFMG, que integra o Circuito Cultural Praça da Liberdade. Idealizado e coordenado pelo regente Helvécio Viana, o grupo lançou o primeiro álbum, Os devotos de São Doidão, em novembro de 2013. “Na loucura, as pessoas estão em frequência diferente das outras. Vibram diferente”, afirma Cristiano Quintanilha, de 34, um dos integrantes do coletivo.

A importância do trabalho foi reconhecida em 2009, quando o grupo recebeu o Prêmio Cultural Loucos pela Diversidade, concedido pelo Ministério da Cultura. “De Devotos de São Doidão passamos para São Doidão, que é um nome mais fácil. São de sanidade, e doidão de loucura. Também pode ser uma referência ao santo protetor dos malucos ou pode ser uma forma de dizer que todo mundo é doidão. São semânticas multifacetadas”, explica Helvécio.

Helvécio defende os avanços da luta antimanicomial que possibilitou incluir os portadores de sofrimento mental na vida social. “É um processo de inclusão e reinclusão, melhorando a relação com o mundo. É o fazer artístico como proposta de convívio social, trabalho e exercício da cidadania.” O álbum Os devotos de São Doidão tem releituras de canções de Chico Buarque, Gilberto Gil, Dominguinhos e João do Vale. Também traz o samba-enredo Devotos de São Doidão, composição autoral que dá nome ao álbum. “A loucura é essencial para a arte. As duas estão abraçadas. Não existe arte sem loucura. A arte é aquela coisa que parece estranha, que desconcerta”, diz Cristiano.

A arte como ferramenta terapêutica foi introduzida no Brasil pela psiquiatra Nise da Silveira. O pioneirismo e a importância dela para a mudança no tratamento de pessoas com sofrimento mental foram retratados no filme Nise – o coração da loucura, dirigido por Roberto Berliner e estrelado por Glória Pires.

Humberto Verona, coordenador estadual de saúde mental, defende que a arte vem como parte da vida. “É a manifestação humana da capacidade de interpretar, criar laço afetivo. Tem funcionado muito como forma de expressão e possibilidade de os pacientes criarem laços. A Nise começou o trabalho nos manicômios reconhecendo as pessoas que estavam lá como seres humanos. Resgatava cada um com o encontro, a conversa. Nise foi uma pioneira”, afirma. No Brasil, existe uma rede de centros de convivência e tratamento de pessoas com sofrimento mental. Em Minas, são 340, nove deles na capital. As oficinas de arte são frequentes em todas as unidades e têm comprovado a importância das linguagens artísticas nos usuários.

Ricardo Rodrigues Silva, de 43, que integra os naipes de vozes do São Doidão, é um exemplo da eficácia da arte no tratamento psiquiátrico. “Antes de entrar para o São Doidão, passei por uma depressão. Fiquei internado dois meses no Pinel para tratar de uma esquizofrenia paranoide.” Agora no grupo, ele ensaia praticamente todos os dias. “Estou mais alegre. Consigo aliviar a insegurança”, completa.

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